Artigo / Por Humberto de Oliveira 18 de abril de 2025

O banquete da gratidão: outras formas de celebrar a Paixão de Cristo na Bahia

O imaginário cultural dos povos católicos conhece bem o sofrimento ao qual a humanidade seria convidada a partilhar, mesmo se por uma coerção “suave”: do jejum de alimentos à abstinência sexual, todo o período da Quaresma, com o recrudescimento durante a chamada Semana Santa quando, somente, o sofrimento deveria ser imaginado, vivido e pensado. De fato, o luto compartilhado pela morte e crucificação do Cristo deveria ser vivido, senão vivenciado, em todas as casas, por todas as famílias católicas e em todas as esferas sociais.

Nas cidades, e com maior ênfase na zona rural, silêncio e tristeza, ausência de quaisquer cores que pudessem afastar o olhar da escuridão e da dor, reinariam durante dias, recobririam todas as falas, silenciariam todas as vozes, e todos os corpos. Na sexta-feira da Paixão, nem mesmo o leite das vacas, os vaqueiros poderiam ordenhar. Nenhum trabalho, nenhuma alegria, nenhuma distração, nada mais além da mortificação dos corpos humanos por profunda e obrigatória simpatia com o Cristo crucificado.

Claro que a modernização das sociedades, com o avanço do capitalismo – que não pode ter freios, não pode, por sua própria natureza, sofrer limitações que ameacem o chamado progresso e a perspectiva de maiores ganhos – tudo isso iria contribuir para uma mudança nos costumes, até mesmo na vida daqueles mais renitentes e penitentes católicos. Assim, a igreja iria relaxar, paulatinamente, alguns costumes, autorizando a redução dos dias do jejum, e depois liberando a carne no cardápio das famílias, na própria Sexta-feira santa. E diminuindo, claro, o período do luto.

No entanto, talvez que seja na Bahia, em determinadas regiões desta Bahia tão grande, onde as heranças indígenas e africanas se fazem sentir mais fortemente, – recobrindo, em determinados momentos, a tradição católica europeia herdada dos portugueses,- que a “Semana Santa” antes um período de mortificação e sacrifícios dos mais diversos, de privação de prazeres com o culto da melancolia e vivência no luto, tenha se tornado um momento de celebração da vida, celebração da esperança, senão da certeza, mesmo, na ressurreição. De fato, seguindo a própria orientação da Igreja católica, enquanto as famílias católicas de tradição europeia já viriam a substituir a carne pelo peixe, a herança cultural afro-indígena legou ao povo baiano a riqueza da culinária com seus sabores e cores que fazem a festa dos sentidos e dão prazer ao corpo.

O que queremos com isso? Pode-se perguntar um estrangeiro alheio às tradições que ele ignora. Que ninguém duvide da fé, por vezes inabalável e até mesmo cega, de homens e mulheres que se dizem agradecidos ao Criador pelo dom da vida, mesmo da vida pobre e sofrida que carregam com dignidade, neste “vale de lágrimas” como todo bom cristão. E Deus e os pobres bem sabem das provações e humilhações que são rotineiras nas vidas de homens e mulheres que não se rebelam, não pregam o ódio ou a violência, acreditando nas palavras do próprio Cristo. É que não lhes falta a coragem necessária para alimentar a fé no milagre da vida. E por serem gratos à vida recebida como um dom, reconhecem o sacrifício do Cristo como uma autorização para o viver em plenitude. Sabem, em sua sabedoria toda particular, que, ao se deixar imolar, o Cristo tomou para si todos os pecados e que seu corpo morto é a prova maior deste banquete sacrificial, que é também um passaporte para a libertação.

Por isso, cada família baiana, com suas tradições herdadas dos povos originários e dos africanos que aqui chegaram nesta dolorosa diáspora, realizam, com o pouco que podem dispor do muito que a natureza lhes oferece, o banquete da sexta-feira Santa, com peixes e mariscos que as águas dos mares e rios e lagoas lhes oferece. Banquete festivo, antecipando a certeza da ressurreição, celebrando o ressurgimento da nova organização depois do caos da dor e do sofrimento vividos pelo Cristo.

É em gratidão ao Cristo que nos banqueteamos, que comemos a mais saborosa comida preparada com esmero e requintada simplicidade que só a herança africana sabe oferecer, e bebemos cerveja ou vinho. É por ele e com ele, o Cristo, agora que, graças ao seu sacrifício, estamos libertos das trevas, temos consciência de que podemos viver na luz que nossos bons atos poderão nos conduzir. É assim que vejo a fartura nas mesas do nosso povo, nas nossas mesas, em cada sexta-feira, com a fé e a coragem dos que acreditam na possibilidade de uma vida melhor. E sentimos muito que, em outros lugares e outros corações, ainda se perenize o luto, cultivem a tristeza e a falta de alegria de viver.

*Humberto de Oliveira, escritor e tradutor.

Editor da Revista Cadernos do Sertão 

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