O olhar de Oscar Marques sobre a festa que nasceu da chuva
Desta quinta-feira até domingo (1º a 4 de março), Feira de Santana realiza mais uma edição da sua tradicional Micareta, a primeira do Brasil, criada em 1937. Inspirada no Carnaval, mas realizada fora de época, a festa é hoje um dos maiores símbolos da identidade cultural feirense.
Para celebrar esta trajetória, resgatamos uma entrevista histórica publicada no domingo de 16 de abril de 1989: Oscar Marques, um dos organizadores da primeira Micareta. O material revela como um acidente climático deu origem à festa e como ela evoluiu ao longo dos anos, transformando o feirense em verdadeiro folião.
A entrevista, apresentada aqui na íntegra, é um convite a revisitar a memória de uma festa que atravessou gerações e consolidou Feira de Santana no mapa das grandes celebrações populares do país.
Oscar Marques teve uma passagem marcante na história de Feira de Santana, nos campos social, econômico e político. Foi pecuarista e, como político, vereador pelo Partido Social Democrático-PSD, 1947, deputado estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), 1967-1971, e reeleito, MDB, 1971-1975.
O Feira Hoje era editado por Anchieta Nery, tinha Dimas Oliveira como redator e Valdomiro Silva como chefe de reportagem
A micareta ensinou o feirense a ser folião
Desde sexta-feira até a madrugada de quarta-feira, o folião de Feira de Santana ou visitante só pensa num objetivo: curtir a micareta, uma festa que se caracteriza como o segundo mais animado carnaval da Bahia, o chamado país do carnaval. Para conversar sobre a origem e evolução desta festa, que já foi realizada 50 vezes com esta, em 52 anos, o Feira Hoje convidou o ex-deputado Oscar Marques, uma pessoa ligada à festa por tradição de tempo e por característica festiva. Ele fez parte da comissão que organizou a primeira micareta, em 17 de fevereiro de 1937.
Segundo a versão de Oscar, conhecida da maior parte dos feirenses, a micareta nasceu de um acidente pluvial. No último dia do carnaval de 37, uma forte trovoada não deixou fazer a festa. Adiaram e fizeram a micareta. Daí para cá, só houve um pequeno ajuste de datas e em dois anos ela ficou sem ser realizada um por causa da revolução de 64 e outro por causa da Segunda Guerra Mundial. Nestes anos, diz Oscar, a micareta ensinou ao feirense ser um folião de verdade. Que isso seja cumprido até quarta-feira.
Feira Hoje – Como é que começou a micareta de Feira de Santana?
Oscar Marques – No ano de 1937, nós faziamos o carnaval como todo o Brasil fazia. Em fevereiro, em pleno carnaval, na terça-feira, nós teríamos o grande dia da festa e às 10 horas da manhá desabou uma grande tempestade, que foi até as 11 da noite e por isso deixou-se de fazer o último dia, que era 17 de fevereiro,
FH – A micareta então teria nascido de uma trovoada?
OM – De uma trovoada, foi um acidente. Então transferimos para fazer a micareme, no Sábado de Aleluia e no Domingo de Páscoa. Fizemos a primeira e após a festa o padre Aderbal Miranda nos pediu que não a fizéssemos naqueles dias próximos da Quaresma e que transferíssemos para mais oito dias e assim o fizemos, o que vinha se fazendo até poucos anos.
FH – A micareta esteve sempre, no começo, ali pela Conselheiro Franco. E como era a festa?
OM – A festa era composta por cordões, batucadas, não havia trios ainda; nós mesmo apresentamos um grande préstito com 300 figurantes, carros alegóricos muito bonitos, dentre eles um carro da rainha de Sabá visitando Salomão e carros com camelos, elefantes, animais de grande porte, modelados pelos artífices João Bojô e Maneca Ferreira.
FH – Quando o carnaval deixou de existir e surgiu a micareta deu para sentir qual dos dois era melhor?
OM – Nós nos convencemos de que a micareta era melhor, porque a Bahia tinha um carnaval muito grande, já havia estrada de rodagem, muitas pessoas saiam daqui para Salvador e esvaziavam a nossa festa. Então, transferindo-se para a micareta, toda a sociedade de Feira permanecia aqui e vinha muita gente de Salvador para enriquecê-la.
FH – Salvador tinha uma micareta depois do carnaval. Então a festa não é uma invenção feirense?
OM – Salvador fez uma micareme e não funcionou Uma apenas, e não deu certo.
FH – Qual a diferença que a micareta daquela época tem para a de hoje?
OM – A micareta daquela época era de bailes na Sociedade Filarmônica Vitória, 25 de Março e os desfiles na rua Direita – da Faculdade de Educação até a Igreja dos Remédios com muita luz, lança perfume, serpentina, confetes, caminhões enfeitados.
FH – Não havia a perseguição ao lança perfume?
OM – Era o cheiro, o lança mesmo. Se jogava nas moças, no pescoço, havia batalha de lança perfame e não havia essa preocupação de hoje, de tóxico. Se usava aquilo como perfume, a titulo de afago, de carinho e de estímulo.
FH – Quando é que surgiu o trio elétrico na festa?

Oscar Marques, em sociedade (álbum de famíia)
OM – O trio elétrico surgiu muitos anos depois, com Dodo & Osmar. Mas, em 1962, nas bodas de prata da micareta, vieram desfilar, pela primeira vez em Feira, as grandes fantasias do Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que vieram aqui Evandro de Castro Lima, Marguerite e muitos outros nomes. Eles desfiłavam no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, vieram desfilar aqui, no Feira Tênis Clube
FH – A escola de samba apareceu com a micareta ou veio depois?
OM – A escola de samba veio depois. Já haviam os cordões carnavalescos, de mocinhas, rapazinhos e depois então veio se transformando em escola de samba, uma imitação ao que se faz no Rio de Janeiro.
FH – Porque a micareta da Conselheiro Franco caiu?
OM – Caiu porque a cidade foi se desenvolvendo e o Feira Tênis Clube que foi construído na rua Visconde do Rio Branco, depois veio o Cajueiro e não se tinha mais condições de fazer a festa na rua Direita. De mo do que a cidade crescia muito e a rua Direita se tornou pequena e então se transferiu para a avenida Senhor dos Passos.
FH – Nestes 52 anos de existência da micareta, apenas em dois ela não foi realizada: em 45, por causa da Segunda Guerra Mundial e em 64 em decorrência da revolução. Como é que o feirense reagiu com a não realização da festa?
OM – Ele se conformou, porque o povo naquele tempo era dócil, não havia violência e achou que era coisa justa. Muitas famílias tinham seus filhos lá na Europa, inclusive daqui
FH – Qual a diferença básica entre a micareta de hoje e a dos anos 40?
OM – A diferença era que havia mais amor, a música era mais sentimental, era uma música que mexia mais com o coração dos brasileiros, do baiano, não era como esta música de hoje, de trio, de dança da galinha.
FH – O senhor lembra algumas delas?
OM – “Teu cabelo não nega”, “Jardineira” e muitas outras músicas que a gente sentia.
FH – O senhor fez parte da comissão que organize a primeira micareta. Quem mais se encontra vivo, desta comissão?
OM – Desta comissão continua vivo Ezídio Carneiro, que também luto comigo e não tenho conhecimento de mais ninguém. Apenas Manoel de Emilia que não fazia parte da co missão, fazia parte do Clube Melindrosas.
FH – O senhor lembra, nestes anos todos, de um fato que tenha marcado a micareta?
OM – O que mais marcou foi uma divisão. O doutor Otto Schmidt trouxe para Feira uns carros do Cruz Vermelho, então o feirense se animou e contribuiu paRA que nós tivéssemos um préstito melhor do que o do visitante. Isso foi em 1940 marcou muito a festa.
FH – No aspecto da animação, o feirense continua o mesmo dos carnavais anteriores?
OM – Eu acho que o feirense tinha mais animação. Agora é mais violência, é mais bebida, é mais tóxico. Antigamente não, havia mais alegria, os bailes da 25 de Março iam até as seis horas da manhã. No Tênis, quando acabava a festa de manhã nós salamos com a orquestra, passeando pelas ruas e cantando.
FH – Mas hoje o Cajueiro e o Tênis continuam terminando ao amanhecer do dia.
OM – Mas termina lá, não sai como nós saíamos e as festas começavam 10 horas e agora estão começando 11h30min a uma hora da manhã. O Caju de Ouro começou a uma hora manhã.
FH – O senhor acha que o feirense não foge à regra do resto dos baianos e é folião?
OM – Ele é folião. Ele aprendeu a ser folião neste 50 anos.
Nota: Oscar Marques nos deixou em 10 de março de 1990.
FH, 27/04/25
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