Artigo / Por Everaldo Goes 22 de maio de 2025

O que estamos realmente buscando?

Do bebê reborn ao próximo vazio. O que fazer? Não há solução mágica, mas há caminhos — quase sempre simples, humanos, silenciosos

Dias atrás, um grupo religioso declarou que não batizaria bebês reborn. A notícia viralizou. Não por ser um caso frequente, mas porque, de alguma forma, espelha uma angústia difusa — o espanto diante do que nos tornamos.

Não é a primeira vez que objetos inanimados recebem afeto, cuidado ou obsessão. Já houve tempo em que as novelas ocupavam o centro da sala e da conversa. Teve o Tamagotchi — o ‘bichinho virtual’ que adoecia se não fosse alimentado. Vieram os reality shows, os grupos de WhatsApp da família, amigos e colegas de escola e trabalho, a dependência por atualizações da vida alheia.

E agora, os bebês reborn, com roupinhas reais, nomes próprios, documentos e até passeios de carrinho.

E a mente da mãe que segura um bebê que nunca cresce? Ela também congela no tempo? Fica presa a um afeto sem futuro, como se o tempo parasse dentro dela?

O que há por trás disso? Talvez uma solidão que a vida concreta não está mais conseguindo preencher.

A conexão, custe o que custar

Todo ser humano precisa se conectar com algo — um objeto, uma causa, uma comunidade, um símbolo. É da nossa constituição afetiva. Sem isso, nos desorganizamos. E a cultura, a mídia e o mercado oferecem continuamente substitutos emocionais.

Mas, em vez de vínculos autênticos, temos cada vez mais vínculos simulados, estéreis, descartáveis. O cuidado com o bebê reborn é real, mas o bebê não existe. A conversa com os seguidores é constante, mas ninguém está presente. O afeto se transfere para onde ele não encontra resistência — ou complexidade.

Com isso, surgem desequilíbrios. Já não são raros os casos de pessoas manipuladas por figuras na internet, que se aproveitam da carência para dominar emocional e financeiramente. A necessidade de pertencimento vira ferramenta de dominação.

Nos casos mais extremos — e trágicos —, temos jovens que, rejeitados ou isolados, canalizam sua dor em atos violentos, como os que, armados, invadem escolas para matar colegas. Por trás desses atos está sempre o mesmo grito: “olhem para mim”.

E os pets? Até quando preenchem?

Há muito tempo, os animais de estimação ocupam o lugar de companhia incondicional. Eles ainda são, para milhões, fonte legítima de afeto.

A indústria pet cresceu como nunca. Humanizamos os animais: roupas, festas de aniversário, psicólogos, creches. Tudo isso responde ao mesmo impulso — projetar no outro (no caso, o pet) aquilo que falta na gente. Mas e se essa transferência começar a parecer insuficiente? Abandonaremos e partiremos para os bebês reborn e cia?

O surgimento dos bebês reborn pode ser um sinal de um novo ciclo. Mas, esperemos que as pessoas continuem preferindo os pets — bichinhos verdadeiros, amigos que preenchem pessoas de todas as idades e que merecem a atenção dos humanos.

Depois do reborn, o quê?

Quando a ilusão perde força, o que vem depois?

Provavelmente uma nova febre. Um novo objeto de culto, uma nova forma de se iludir. Pode ser algo ainda mais digital — como os ‘companheiros de IA’, que já existem em aplicativos de conversa. Ou, como já se vê em alguns países, os/as ‘namorados/as robô’ com aparência realista, vendidas como parceiros/as ideais por serem lindo/as e sexy, obedientes, incansáveis. Tudo sem o “risco” do afeto humano.

Pode também vir um retrocesso simbólico ainda maior — adultos que voltam a brincar com bonecas ou criam famílias imaginárias. Ou algo mais perigoso: o culto à performance extrema, à autoexposição sem limites, ao radicalismo emocional.

O padrão é conhecido:
carência → projeção → moda → saturação → vazio → nova carência.
E o ciclo recomeça.

O que estamos realmente buscando?

Não é um bebê de silicone, nem um feed de fofocas, nem uma boneca com pele sintética. É conexão humana verdadeira, que só nasce no contato real, no vínculo que exige esforço, frustração, cuidado mútuo. Tudo que a vida digital — e muitas vezes a vida moderna — tenta evitar.

Enquanto evitarmos o difícil, viveremos do fácil. Mas o fácil, cedo ou tarde, deixa de bastar.

E o que fazer?

Não há solução mágica, mas há caminhos — quase sempre simples, humanos, silenciosos.

Talvez seja o caso de voltarmos ao básico, como conversar de verdade, ouvir com atenção, estar presente. Visitar um parente idoso, ouvir um vizinho sem pressa, criar espaços onde as crianças possam brincar entre si, longe das telas. Cozinhar com alguém. Reunir pessoas para falar de algo que importe, mesmo que comece pequeno, mesmo que não dê ‘engajamento’.

Lembrando que todas as pessoas, especialmente idosos, sempre têm algo valioso para repassar.

É preciso reumanizar a vida cotidiana. Recuperar vínculos que não são baseados em curtidas, emojis ou dependência emocional. Vínculos que se sustentam na imperfeição do outro — e na nossa.

Nada disso substitui as dores profundas ou resolve todos os conflitos. Mas é aí, nesse chão comum, que a vida se reorganiza.
O que preenche de verdade não é o que parece real — é o que exige de nós presença, escuta, reciprocidade.

*Everaldo Goes é graduado em Licenciatura em História, jornalista e editor do Feira Hoje

PS.: “E os orfanatos lotados de crianças à espera de adoção”, comentou um leitor do Feira Hoje.

22/05/25

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