Jornalismo que se aprendia no olhar e se aperfeiçoava na convivência
A cena parece saída de um filme: dois jornalistas, cansados, mas animados, sentam-se à mesa de um bar de esquina, máquinas de escrever ainda ecoando em suas mentes, enquanto a fumaça dos cigarros e o tilintar das garrafas formam a trilha sonora da madrugada. Era assim que muitas histórias nasciam nas antigas redações: entre o fechamento do jornal e o primeiro gole da noite.
As redações de ontem eram verdadeiras casas para o jornalista. Eram lugares vibrantes, cheios de ruído, de papel amassado no chão, de discussões calorosas sobre política, sociedade e futebol. Jovens repórteres conviviam diariamente com veteranos — os chamados “decanos” — que, entre uma lauda e outra, ensinavam os caminhos invisíveis da profissão: como ganhar a confiança de uma fonte, como ler nas entrelinhas de um discurso, como perceber que uma grande reportagem pode nascer de uma informação pequena, quase despercebida.
O aprendizado não vinha em cursos online nem em tutoriais. Vinha na prática, no erro corrigido na hora pelo editor, no conselho dado sem cerimônia durante o expediente — ou no bar, depois do fechamento. Ali, fora do relógio, o jornalismo mostrava sua alma: feita de curiosidade, coragem e um compromisso visceral com a verdade, que ia muito além do salário.
Mas nem tudo era harmonia dentro dessas casas. Um conflito constante pairava no ar: redação versus setor comercial. Enquanto os repórteres e editores buscavam a verdade, doa a quem doer, o departamento comercial muitas vezes aparecia para lembrar que a sobrevivência do jornal dependia dos anúncios — inclusive daqueles que envolviam os investigados de uma matéria incômoda. “Esse é o cliente que mantém o jornal de pé”, diziam. E era verdade. Mas a tensão era inevitável: de um lado, o dever ético; do outro, a pressão financeira. Alguns jornais cederam. Outros resistiram com bravura, pagando o preço da independência.
Hoje, o cenário é outro. A velocidade da internet transformou todo mundo em “jornalista” — ou pelo menos em produtor e consumidor de notícias. Com um celular na mão, qualquer um pode transmitir informações em tempo real. Mas junto com essa democratização veio a perda de algo essencial: a convivência entre gerações, a experiência transmitida de forma viva, a reverência pela apuração paciente e pela escrita precisa.
As redações físicas encolheram ou simplesmente desapareceram. Muitos jornalistas trabalham de casa, sozinhos, sem o burburinho de colegas nem a oportunidade de aprender observando os mais experientes. A matéria investigativa, que exigia semanas ou meses de dedicação, muitas vezes dá lugar a conteúdos feitos às pressas, desenhados para agradar algoritmos e acumular curtidas.
O jornalismo, que antes buscava aprofundar a realidade, hoje frequentemente se vê pressionado a entregar o raso, o polêmico, o que viraliza. Não há mais tempo para o “barzinho depois do fechamento”, nem para a conversa longa que revelava detalhes escondidos de uma história.
Ainda assim, algo da velha alma jornalística resiste. Nas novas gerações, há jovens que, mesmo sem conviver com os antigos decanos, buscam resgatar a essência da profissão: a investigação séria, o texto bem construído, a responsabilidade com a informação pública. Eles fazem isso em novos formatos — podcasts, newsletters, canais independentes — mas com a mesma chama que movia os repórteres de ontem.
Talvez o jornalismo nunca volte a ser como naqueles bares esfumaçados, com máquinas de escrever na bagagem e histórias na ponta da língua. Mas enquanto houver quem acredite que uma boa apuração ainda vale mais do que a pressa, o espírito daquelas madrugadas seguirá vivo — mesmo que em outro endereço.
Hoje (25/04/25) foi o sepultamento de Vera Alencar, esposa do jornalista Helder Alencar, ou simplesmente Doutor Helder, editor do Feira Hoje nos anos 1980, onde iniciei, como revisor. Helder, também advogado, dedicou a vida à Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) como procurador do Estado. Nós, na Ascom/Uefs, não publicávamos um único texto considerado polêmico sem antes consultar a experiência de Doutor Helder.
O texto acima também é uma homenagem a tantos que ajudaram no crescimento de inúmeros jornalistas e que hoje estão em outro plano:
Anchieta Nery
Jorge Magalhães
Geraldo Lima
Socorro Pitombo
Adílson Simas
Conceição Lobo
Elis Regina
Egberto Costa
Fagundes
Maria Aparecida (Cida)
José Carlos Teixeira
Antônio Magalhães
Jackson Soares
Jorge Neves
Davino
Rudival Braga
Cid Daltro
Ruy Caribé
Lucy
Dona Neuza
Seo João (professor e padre, irmão de Modesto Cerqueira, que nos anos 1980 chefiava a revisão do Feira Hoje, quando necessário até a madrugada)
Modezil Cerqueira
Noide Cerqueira
Pedro Irujo
E outros…
A família dos jornais se estendia a outros setores, todos irmãos: motoristas, digitadores, arte-finalistas…
*Everaldo Goes é jornalista, graduado em Licenciatura em História e editor do Feira Hoje.
25/04/25