Humberto de Oliveira 10 de março de 2025

Esplendores e misérias da festa popular 

Claro que este é um título que, segundo alguns acadêmicos, “dialogaria” com Honoré de Balzac e seu famoso romance Esplendores e misérias das cortesãs. Na verdade, trata-se, apenas, do aproveitamento do título da obra do escritor francês, para falar sobre o espetáculo que enche os olhos dos turistas e participantes desta celebração da fé popular, aclamada pela imprensa e incentivada pelos poderes públicos desejosos de dinamizarem a economia e divulgarem a cultura local, “promovendo a geração de renda e impulsionando o empreendendorismo”.

Sem dúvida alguma, é inegável a beleza do espetáculo multicolorido, com predominância do azul e branco, cores “oficiais” desta divindade feminina, figura materna que requer dos seus filhos e filhas oferendas com cheiros e cores, brilhos e fulgores: rosas, colares e espelhos, missangas, tudo assim quase sem custos elevados que inflacionem a já parca receita doméstica, pois esta mãe, como todas as outras neste vasto mundo, ela sabe que a maioria dos seus filhos e filhas excedem em contas a pagar, estão mais ricos em boletos do que em dinheiro juntado no pequeno e frágil mealheiro. Por isso ela, divina mãe, generosa e dócil, se contenta com flores e cheiros, e brilhos reluzentes. Mesmo porque, como diz o poeta Gerônimo em sua É d’Oxum: “Seja tenente ou filho de pescador/Ou um importante desembargador./Se der presente é tudo uma coisa só”. Bastaria, para sua vaidade de mulher, saber-se presenteada. É o que dizem os que afirmam conhecer seus mistérios. Conhecem tanto desta divindade muda que estipularam até o seu dia preferido: ficou combinado, num calendário laico e decerto, bem pensado, que no dia 2, do segundo mês de cada ano, todas as homenagens seriam prestadas a esta divindade materna, mãe excelsa que num canto se chama Sequana, em outro Yemanjá, em vários outros Maria e que, como nos lembra o mestre Raul Seixas em sua Ave Maria da rua é “qualquer mulher/ mulher.em qualquer dia”.

Não importa se pobre, ou rica, gente de todas as classes sociais saem de suas mansões, apartamentos ou casebres, com ramalhetes e presentes nas mãos e, seja em iates, lanchas, saveiros ou em canoas alugadas dos pescadores, aventuram-se mar a dentro para jogar presentes para esta mãe caprichosa que receberá todos os presentes e, a depender do fluxo da maré, poderá devolver a maioria das oferendas. As outras? Silêncio total jamais desmentido pelas profundezas do mar. Mas isto não tem a menor importância.

Levam-se oferendas, porque é de praxe, quem vai de encontro a esta norma preconizada pelos que nela acreditam? Se é tão belo o espetáculo, tão linda a festa – sim, é uma festa, e quem não gosta de festa?- por isso a adesão voluntária e franca. Enquanto outros, em outros espaços guerreiam, lançam bombas, atentam contra a humanidade dos desiguais, aqui, abraçam-se iguais e diferentes, pois sabemos, mesmo se desconfiamos – não podemos negar nossa demorada infância na vida adulta- que de fato reside a mesma humanidade na aparência da diversidade. Damos um voto de confiança a nossa boa vontade e, nesta festa, como em outras, de mão estendida, como um permanente toré acolhemos quem chega, sem perguntar de onde vem, nem para aonde vai. Importa estar aqui e agora. Por isso, também, o esplendor desta festa se torna maior. Por isso gente de todas as cores e classes sociais se faz presente. Medianos e remediados vão à luta, isto é, dão provas de fé e de adesão à tradição. Outros, nem assim tão preocupados com a crença religiosa, querem mesmo é curtir um dia alegre e festivo. E para isso contam com a presença ostensiva dos muito pobres que, enfileirados, em caixotes de pouco menos de um metro quadrado, de costas para o mar, – talvez para não correrem o risco de se deslumbrarem com o espetáculo -, competem entre si, vendendo cerveja, água mineral, ou refrigerante, empreendendo. Sem este povo pobre, os poderes públicos jamais poderiam justificar o uso generoso dos patrocínios. Afinal, é para eles, dizem, que assim se incentiva a criação de empregos e impulsiona o aumento da renda! Por isso, para “ajudar a combater a pobreza”, é que é bem organizada a festa. Um não existindo sem a outra, o esplendor da festa e a pobreza humana formam um só e único espetáculo amalgamado de tal modo que chega a ser insensato que alguém, em sã consciêcia, possa colocar em dúvida a normalidade deste espetáculo.

*Humberto de Oliveira, escritor e tradutor.

Editor da Revista Cadernos do Sertão 

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